Sunday, June 22 2025

Na passagem de 2015 para 2016 uma série de ataques a mulheres em diversas cidades da Alemanha assustou o país. A repercussão do caso nos dias que se seguiram foi internacional e crescente. Os agressores, de acordo com as descrições das vítimas, eram de aparência árabe e norte-africana, fato que aumentou o debate em torno das políticas de imigração alemãs. Partindo desse caso, procuro contextualizar o debate público, apontar possíveis falhas do governo alemão e sugerir medidas que garantam a segurança de mulheres e outros cidadãos, para que situações como a do réveillon sejam prevenidas.

Texto de Laura Ammann


We tend to forget that there is nothing redeeming in suffering: being a victim at the bottom of the social ladder does not make you some kind of privileged voice of morality and justice.

Slavoj Žižek[1]

Na noite de réveillon houve uma série de ataques a mulheres em locais públicos em diversas cidades da Alemanha. A repercussão nos dias que se seguiram foi internacional e crescente. A cidade de Colônia esteve no centro das atenções e foi a primeira a ter casos reportados de assédio sexual físico e moral, e pelo menos um estupro. Após o aumento de queixas prestadas em Colônia, outras cidades como Hamburg[2], Stuttgart[3] e Berlin[4] também registraram denúncias. Os agressores, de acordo com as descrições das vítimas, eram de aparência árabe e norte-africana. A primeira declaração da chanceler Angela Merkel buscou, corretamente, não inflamar os ânimos populares supondo uma relação entre os ataques e o número crescente de imigrantes que vêm ao país: “O possível deve ser feito para investigar completamente e o quanto antes quem são os culpados e para puni-los, independentemente de sua aparência, origem ou passado”[5]. Entretanto, na sexta-feira (08/01) a polícia alemã anunciou que entre os 31 homens detidos sob suspeita de envolvimento com os ataques em Colônia, 18 eram solicitantes de asilo[6], o que voltou a reforçar algumas opiniões negativas em relação ao papel alemão na crise migratória.

A combinação da crise de imigração com o fato da Alemanha ser o expoente no que tange o recebimento de refugiados gera o crescimento de dois movimentos opostos no país: o de rejeição às políticas favoráveis aos que buscam asilo e, em contraponto, o de apoio à vinda de imigrantes, movimento que cresce à medida que cresce também o radicalismo do primeiro, um em resposta ao outro.

Nas primeiras notícias e declarações sobre o caso já se podia perceber o receio em relacionar os ataques aos imigrantes. Da mesma forma que Merkel se manifestou contra suposições precipitadas sobre o tema, a prefeita de Colônia, Henriette Reker[7] – esfaqueada ano passado durante uma campanha em razão do seu apoio à política de abertura a refugiados –, o Ministro do Interior, Thomas de Maiziére[8] e o Ministro da Justiça, Heiko Maas[9] alertaram o erro em atribuir aos imigrantes os ataques, embora tenham todos se mostrado “enojados” com as agressões e empenhados em realizar investigações, punindo os agressores.

Entretanto, com o crescimento do debate em torno da imigração[10], aumentou também o número de opiniões que creem que a relação entre os ataques e a crise migratória é inevitável. Importante colunista do jornal Tagesspiegel, Harald Martenstein, é certo de sua opinião: a preocupação não são os refugiados, é o Islã[11]. O artigo de opinião responde a uma série de manifestações favoráveis à política de asilo que exibia diversos cartazes contra o racismo, em reação a inquietações da extrema direita do país. De acordo com Martenstein, não se deve tratar o tema sob um olhar racial, já que o islamismo não é uma raça, mas uma ideologia. A partir daí ele coloca a percepção das mulheres que a religião muçulmana tem como uma ameaça aos valores ocidentais. Nesse sentido, em uma reportagem do jornal britânico The Guardian[12], Sascha Lobo, colunista da revista alemã Spiegel, diz que é importante que haja um diálogo franco no país e evitar eufemismos: “Sim, existe uma percepção problemática da mulher nos círculos culturais islâmicos. E sim, precisa-se examinar como essa percepção afeta a violência na Alemanha”, ainda que Lobo tenha feito também as suas ressalvas em torno de uma possível e perigosa generalização. O artigo continua com outras opiniões em direção à “quebra do taboo” no trato de temas como imigração e islã.

Entre os que se manifestam negativamente em torno da abertura da Alemanha aos imigrantes – principalmente árabes e muçulmanos – estão os extremistas, que muitas vezes encontram apoio em partidos como o Peguida[13], que relembra com saudosismo os tempos nazistas. Ao longo dos dias que seguiram os ataques da noite de réveillon, foram noticiados casos de agressão a famílias e indivíduos de aparência árabe e a solicitantes de asilo. Infelizmente, esses ataques não são inéditos e o país vem assistindo a atos de extrema violência contra refugiados e imigrantes – sem poupar crianças e mulheres – há alguns meses. Entre os casos que mais geraram reações em Berlim estão um indivíduo que urinou em uma criança imigrante no metrô[14] e, mais recentemente, um senhor refugiado que foi espancado em uma estação de metrô, juntamente com seus filhos, uma menina de 13 anos e um menino de 16[15].

Em relação às ofensivas do réveillon, uma questão importante foi levantada por alguns jornais, como por exemplo o Deutsche Welle[16]: como é possível que os ataques a mulheres na noite de réveillon tenham acontecido em lugares públicos, de grande circulação, sem o mínimo de segurança que o Estado deveria garantir? Estendendo o questionamento a uma esfera cotidiana, como é possível que ocorram ataques de ódio a imigrantes e refugiados que vêm aqui buscar uma saída para seus temores?

A grande repercussão dos ataques da noite de réveillon é sintomática não só da covardia dos atos, mas da sua atipicidade. O país tem um dos menores índices de crimes sexuais e verificou com surpresa sua ocorrência em números desproporcionais. Talvez justamente pela falta de hábito em lidar com problemas similares, Henriette Reker foi um tanto infeliz em uma de suas primeiras declarações sobre o caso, dizendo que “é sempre uma possibilidade manter-se a um braço de distância de pessoas suspeitas”[17]. Altamente criticada, ela se desculpou publicamente alguns dias depois. A declaração vai na direção contrária da que deveria – se dirigindo à vítima e não ao agressor – mas ela carrega certa ingenuidade, que poderia ser um sintoma do despreparo no tratamento do tema. Ao que tudo indica, as mudanças populacionais e culturais pelas quais o país passará nos próximos anos exigirão dos governantes mais atitude no futuro.

Com relação ao despreparo do governo alemão no que tange a crise migratória, algumas esferas de melhoria devem ser apontadas, a começar pela própria entrada e adaptação dos imigrantes no país. O momento é de abertura. Entre os refugiados muitos são aqueles que aproveitam a oportunidade. E embora o país tenha uma série políticas de apoio aos refugiados, elas não se aplicam a outros imigrantes, que eventualmente ficam à margem do Estado alemão. Conseguir um visto alemão no momento é bastante simples: após a providência de alguns documentos pode-se recebê-lo rapidamente. Uma das formas mais fáceis de ficar na Alemanha é através da apresentação de uma matrícula em um curso de alemão. Para quem não é refugiado, basta o dinheiro de uma mensalidade para conseguir a documentação; mesmo que as aulas sejam abandonadas depois do processo, o que me parece algo comum. O curso de língua alemã é importante pois é uma das formas mais rápidas de integração na cultura do país, aumentando as chances de relacionamento interpessoal e possibilidades de emprego.

Políticas de assistência visam garantir aos refugiados cursos de alemão e apoio na busca de emprego, mas a Alemanha sofre no momento com os altos custos dessa assistência[18]. Em 2015 o país recebeu cerca de 1,1 milhão de solicitantes de asilo e as estimativas de custo de acomodação, acompanhamento e curso de alemão para esses refugiados é de 10 bilhões de euros[19]. Enquanto o governo tem de refletir sobre o orçamento que será destinado à política de asilo e sobre como ele será distribuído, muitos imigrantes não recebem assistência alguma e permanecem sem perspectivas no país. Além disso, o número de imigrantes ilegais aumenta desde 2013 e a Alemanha, apesar de realizar eventuais prisões, não tem planos sólidos de ação para com essas pessoas, como por exemplo, a legalização de suas situações ilegais[20].

Os imigrantes formam um grupo grande (12% da população total do país) de pessoas bastante diferentes: entre eles há refugiados, imigrantes legais e ilegais, criminosos e pessoas decentes, gente integrada na cultura do país e gente à sua margem. É necessário que se faça essa distinção, e, se a população não é capaz de fazê-la – ora achando que são todos “ilustres convidados”, ora atacando covardemente um em represália ao grupo – é dever do Estado garantir a punição dos agressores e a segurança da população, fazendo assim, portanto, a distinção devida. É inadmissível que aconteçam ataques como os da noite do réveillon, e que mulheres se vejam sem qualquer tipo de auxílio, como foi testemunhado por muitas das vítimas[21]. Igualmente revoltante, as agressões gratuitas a pessoas de aparência principalmente árabe em lugares públicos e, muitas vezes, em plena luz do dia, devem ser tratadas sem tolerância. De certa forma, os ataques de réveillon deram combustível a um debate menos “cor-de-rosa” em relação à imigração no país e doze dias após o ocorrido, a Alemanha anunciou planos de reforço das leis de deportação de imigrantes em caso de envolvimento em atividades criminosas[22], incluindo a redução do tempo mínimo de condenação para que a deportação ocorra[23]. Mas muito ainda deve ser feito e é preciso perder o medo de tomar atitudes mais firmes do que as que o país tem tomado, de modo a depositar esforços no estabelecimento de certa harmonia no convívio da sua população. Nesse sentido, o governo Merkel já começa a enfrentar certos desgastes e é preciso que ele reavalie a promessa de recebimento de refugiados para o ano de 2016. Outra questão também aquece o debate: a Alemanha se comprometeu com a política de asilo sensivelmente mais do que os outros países da comunidade europeia. Tilman Mayer, cientista político da Universidade de Bonn, declarou que “após um período de política de braços abertos, o tempo acabou mudando o tom. Agora, os temas são expulsões e endurecimento da lei (…) Existe até a possibilidade de que ela [Merkel] seja derrubada depois das eleições estaduais que devem ocorrer ao longo do ano. Temos uma chanceler que não diz que 1 milhão de refugiados já é suficiente”[24].

Parece, enfim, que a Alemanha se atrapalhou um pouco ao querer fazer muito, e agora é preciso agir ainda mais. É de fundamental prioridade existirem planos políticos que combinem a responsabilização de infratores com uma maior segurança pública do que aquela com que o país está acostumado a lidar. Adicionalmente, ajudaria alargar o controle de imigrantes no país, favorecendo aqueles que se encaixam em eventuais critérios – como o tipo de atividade exercida no país, ter família no país e/ou ser sua fonte de sustento, não ter antecedentes criminais, ter um empreendimento próprio (muitos têm), estar matriculado em curso de alemão ou saber falar o idioma, etc. Além disso, é preciso haver estratégias para lidar com os imigrantes ilegais, seja a deportação ou a legalização desses indivíduos.

O controle nas fronteiras atualmente é limitado. Há refugiados que alegam existirem pessoas que entram no país dizendo ser sírios em busca de asilo, quando na realidade não estão fugindo de guerra alguma, mas aproveitando o momento de abertura. De acordo com Karam Orfali, um refugiado, para a cada dez pessoas na fronteira há somente dois solicitantes de asilo[25]. Existem dois problemas fáceis de ver caso essa situação seja verdadeira. Primeiramente, ela prejudica quem de fato está precisando de asilo político e, em segundo lugar, é preocupante que a falta de controle da polícia alemã chegue a esse ponto. A Alemanha precisa de segurança para agir com mais firmeza. Ideais e estereótipos de etnias, minorias e nacionalidades devem ser combatidos em prol de um tratamento meritocrático aplicado a toda população, independentemente de sua origem e descendência. Sendo assim, é preciso que pensemos se vale mais a pena receber o maior número de refugiados ou recebê-los com as devidas condições e dignidade.

[1] http://www.newstatesman.com/world/europe/2016/01/slavoj-zizek-cologne-attacks

[2] http://www.morgenpost.de/nachrichten/article206887139/Uebergriffe-auf-Frauen-in-Koeln-und-anderswo-Was-wir-wissen.html

[3] http://www.bbc.com/news/world-europe-35231046?ocid=socialflow_facebook&ns_mchannel=social&ns_campaign=bbcnews&ns_source=facebook

[4] http://www.morgenpost.de/berlin/article206892155/Sexuelle-Uebergriffe-zu-Silvester-auch-in-Berlin.html

[5] Tradução livre de “Everything must be done to investigate as completely and quickly as possible those who are guilty and to punish them regardless of how they look, where they come from or what their background is” – retirado de: http://www.nytimes.com/2016/01/06/world/europe/coordinated-attacks-on-women-in-cologne-were-unprecedented-germany-says.html?smid=fb-nytimes&smtyp=cur&_r=1

[6] http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/01/1727774-merkel-defende-expulsao-de-refugiados-condenados-da-alemanha.shtml

[7] http://www.nytimes.com/2016/01/06/world/europe/coordinated-attacks-on-women-in-cologne-were-unprecedented-germany-says.html?smid=fb-nytimes&smtyp=cur&_r=1

[8] http://www.ft.com/intl/cms/s/0/a1479c20-b3c9-11e5-b147-e5e5bba42e51.html#axzz3xKkNbXIB

[9] http://www.t-online.de/nachrichten/deutschland/gesellschaft/id_76596176/justizminister-heiko-maas-silvester-angriffe-auf-frauen-waren-organisiert.html

[10] http://www.ft.com/intl/cms/s/0/a1479c20-b3c9-11e5-b147-e5e5bba42e51.html#axzz3wT7lR02S

[11] http://www.tagesspiegel.de/politik/martenstein-ueber-koeln-und-political-correctness-es-geht-um-den-islam-nicht-um-fluechtlinge/12811028.html

[12] Tradução livre de: “Yes, there does exist a problematic perception of women in Islamic-oriented cultural circles. And yes, one must examine how this perception of women also results in violence in Germany” – retirado de: http://www.theguardian.com/world/2016/jan/06/tensions-rise-in-germany-over-handling-of-mass-sexual-assaults-in-cologne?CMP=fb_gu

[13] sigla para “Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente”

[14] http://www.welt.de/politik/deutschland/article145593730/Rechtsextremist-uriniert-auf-Migrantenkinder.html

[15] http://www.tagesspiegel.de/weltspiegel/chemnitz-fluechtlingsfamilie-in-silvesternacht-attackiert/12799516.html

[16] http://www.dw.com/de/k%C3%B6ln-nach-dem-schock/a-18962443

[17] http://www.welt.de/politik/deutschland/article150697970/Reker-wehrt-sich-gegen-Kritik-an-Verhaltenstipps.html

[18] http://www.welt.de/politik/deutschland/article148455230/Gruene-wollen-Sprachkurse-fuer-alle-Fluechtlinge.html

[19] http://www.lpb-bw.de/fluechtlingsproblematik.html#c24504

[20] http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/europe/germany/11522462/Illegal-immigration-to-Germany-at-record-high-increase-of-75-per-cent-in-one-year.html

[21] http://www.ft.com/intl/cms/s/0/386ed934-bb94-11e5-bf7e-8a339b6f2164.html#axzz3xKkNbXIB

[22] http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160104_ataques_alemanha_mdb

[23] Hoje, se o indivíduo for julgado culpado por um crime cuja condenação mínima são três anos, ele é deportado ao seu país de origem.

[24] http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/01/1730401-apos-onda-de-assedios-alemas-compram-armas-contra-refugiados.shtml?cmpid=facefolha

[25] Tradução livre do alemão: “A Europa abriu suas portas aos refugiados sírios e todos se aproveitaram disso. Quando você anda pelos campos de refugiados, encontra dez pessoas que dizem ser sírias, quando na verdade somente duas o são. O resto vem do Marrocos, Argélia, Líbano e países africanos” – retirado de: http://www.dw.com/de/facebook-streit-zwischen-migranten-nach-k%C3%B6lner-gewalttaten/a-18975886

 

Laura Ammann é formada em Comunicação com ênfase em Produção Editorial e especialista em Museologia e Curadoria. É co-fundadora do projeto de entrevistas Arte Conceituando*. Mora em Berlim.
* http://arteconceituando.typepad.com/my-blog/entrevistas.html

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