Sunday, June 22 2025
fonte: http://www.flickr.com/photos/74783467@N03/6731196269/in/photostream/
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O Livro do desassossego (1982) é uma obra póstuma de Fernando Pessoa. Atribuída ao heterônimo Bernardo Soares, ela é um conjunto de fragmentos (reflexões, aforismas, poemas em prosa) redigido entre 1913 e 1935. Aí se encontram diversos questionamentos centrais na vida do poeta que também fazem parte de outras obras. Neste texto, abordaremos o fragmento 285[1], para analisar a ipseidade, um dos aspectos substanciais da obra de Pessoa.


Já no início desse fragmento, encontramos um Bernardo Soares vacilante. Além de sentir-se quase convencido do seu estado de vigília, ele não consegue precisar “se sonho e vida não são em mim coisas mistas”[2]. A indecisão é uma das constantes não só na obra pessoana, como também na sua vida, pois, segundo o poeta, “a constituição inteira de meu espírito é de hesitação e dúvida”[3]. O sonho é outra constante, podendo ser ele entendido como fuga da realidade entediante e, sobretudo, como parte importantíssima da essência de Pessoa[4]. Não é coincidência que o heterônimo Soares surgisse quando o poeta português sentia-se sonolento, constituindo, nas palavras de Jacinto do Padro Coelho, “o palco de sonhos independentes [de Pessoa], cousificados, que lhe surgem de fora como o eléctrico que dá a volta na curva extrema da rua…”[5].

No segundo parágrafo, além de a sensação estranha de dúvida ser salientada, começa uma ilustração do conceito de ipseidade de Ricoeur. De acordo com esse, “o Si, depois de passar pelo desvio de amplas análises, deverá ser encarado como um Outro, no duplo sentido de alguém que se transformou devido às peripécias de uma experiência, e de alguém que aprendeu a se pôr no lugar de outrem”[6]. Quando Bernardo Soares afirma sentir “possível ser um sonho de outrem”, ser “personagem de uma novela”, há a constatação inicial de que talvez ele não seja mais um “Si”, mas esteja se tornando um “Outro”. Este último, no entanto, por estar ligado ao sonho e à literatura, está presente somente no âmbito da imaginação, onde se podem realizar fusões que seriam impossíveis na realidade.

Um desses amalgamas aparece no terceiro parágrafo, quando o heterônimo se questiona se o mundo não seria “uma série entreinserta de sonhos e romances, como caixinhas dentro de caixinhas maiores (…) sendo tudo uma história com histórias”. As interseções de romances e sonhos podem ser associadas às peripécias de uma experiência (na definição de Ricoeur), pois são diversas situações misturadas entre si que modificam um quadro inicial. Após tantas interações, o referencial inicial (o “eu” primeiro) perde-se, levando ao não reconhecimento do próprio eu, que sente ser “outro”[7]. O mundo é uma mise en abîme fruto da imaginação, em que o referencial inicial se perde.

Tal cenário é comprovado no parágrafo seguinte. Nele o “eu” não se reconhece mais como agente de suas ações. Inicialmente, ele não sabe ao certo quem age por ele; posteriormente, no entanto, o agente de suas ações é reconhecido no “outrem”[8], que foi gerado a partir de um “eu” modificado por tantas interseções. Mesmo reconhecendo a sua passividade, ele, às vezes, ilude-se, pois crê em vão ser o querer um movimento “próprio”. Por causa dessa desordem, o heterônimo prefere ver e ler a pensar e escrever, pois aquelas ações não geram produtos desse “eu” incerto. Este, é claro, não deseja responsabilizar-se por ações que julga não serem suas, mas feitas pelo “outro” que o controla.

A ipseidade, como já foi dito, permeia a obra de Pessoa. Encontramo-la, por exemplo, nos seguintes versos de Cancioneiro: “Eu vejo-me e estou sem mim,/ conheço-me e não sou eu” (em Gato que brincas) e “meu ser/ Tornou-se-me estranho” (em Ao Longe, ao Luar). É, no entanto, o heterônimo Álvaro de Campos que retrata, em uma só frase, o ponto central do fragmento 285. No poema Lisbon revisited, o eu-lírico afirma ser “Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim”.

Nádia Gonfiantini

[1]              Tal fragmento pode ser lido aqui (acesso em 06/02/2015). A obra de Pessoa está disponível gratuitamente no Domínio Público.

[2]              Ainda no mesmo parágrafo, reforçam essa analise os termos “interseccionadas” e “interpenetração” referindo-se concomitantemente a “sonho” e a “vida”.

[3]              FONSECA, C. O pensamento vivo em Fernando Pessoa, São Paulo: Martin Claret, 1986. p.13.

[4]              Segundo o poeta, ela é constituída por/de “de passividade e de sonho” (Idem, p.14).

[5]              COELHO, J. do P. Diversidade e unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Editorial Verbo, 1982.p.90.

[6]              ANDRADE, A. C. Ricoeur e a formação do sujeito. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p.99.

[7]                      Segundo Coelho, a própria realidade interefere nesse quadro, visto que “a transitoriedade das coisas conduz à negação do eu” (in COELHO, J. C. Diversidade… op. cit., p.89).

[8]              “Se sonho, parece que me escrevem. Se sinto, parece que me pintam.”

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