Para François Truffaut a vida passa pelo texto, seja na forma de confrontação, distância, obsessão ou combustão. Sendo assim ele organizava de forma obsessiva registros de todos seus filmes. Se a exposição na Cinemateca é tão rica, isso se deve em grande parte à grande quantidade de escritos que este cineasta deixou como herança e que nos dão a felicidade de viver sua paixão pelo cinema. A exposição continua até o dia 1º de fevereiro de 2015 na Cinemateca Francesa (77, rue de Bercy ou 8, boulevard de Bercy – 75012, Paris).
Das cartas aos diários, passando evidentemente pelas críticas, o texto representa na obra de François Truffaut o lugar de concretização das paixões. Começando pela sua fascinação pelo cinema, que toma forma nas críticas que começou a escrever para os Cahiers du Cinéma, no início dos anos 1950. Representando por vezes a dor ou a felicidade, a distância ou a intimidade, o texto permeia as vidas dos personagens, que buscam nele a forma de suas emoções.
A Confrontação ou Victor e Antoine
Tanto em O Menino Selvagem (1970) como em Os Incompreendidos (1959) a escrita está ligada à ideia de confrontação. Para Victor assim como para Antoine, ela está associada à educação e a uma disciplina imposta que é em si um processo doloroso pelo qual devem passar. As palavras não pertencem à eles, elas vêm de um outro mundo, o dos adultos-professores, que os ensinarão a se expressar.
Desde o início do ponto de vista formal a história de O Menino Selvagem é mediada pelo texto, ou seja, ela chega ao espectador por meio dos estudos que o Dr Jean Itard faz sobre Victor. Além disso para o menino o uso da palavra é um processo sofrido. Ele deve estudar até a exaustão para compreender e apreender estes códigos, que lhe são estranhos. Enquanto não falar ele será considerado como um animal, ou mesmo algo “abaixo de um animal”, cujas emoções são ignoradas. Todos os esforços de seu tutor são em direção à tentativa de fazer com que este garoto selvagem aprenda a se expressar por meio da linguagem. Para que ele seja considerado humano suas emoções devem passar pela palavra – primeiramente pela palavra escrita, mas em seguida pela palavra falada.
Igualmente em Os Incompreendidos o processo da escrita aparece como obstáculo. Na escola as palavras pertencem ao professor, é ele que diz quando se deve começar ou parar de escrever. Em seguida quando Antoine tenta se expressar escrevendo na parede que ele foi punido injustamente, ele é castigado, sendo obrigado a escrever a conjugação, em todos os tempos do indicativo, condicional e subjuntivo, a frase “eu degrado as paredes da escola e eu maltrato a métrica francesa”. Sua tentativa de tomar a palavra é portanto punida por um uso imposto da escrita. Esta, que deveria ser o meio de expressão, se torna assim meio de repressão. Em casa o altar que ele constrói em homenagem a Balzac causa um incêndio. Em seguida, seu livro é confiscado por sua mãe como punição por ter roubado dinheiro de sua avó. Assim, não por coincidência, o objeto que ele rouba algumas cenas depois é justamente uma máquina de escrever. Porém, neste momento ele já está tão distanciado da escrita que seu objetivo não é mais de se expressar, mas de vender o objeto. Ele quer abandonar a escola, ganhar sua própria vida e ir ver o mar, símbolo de liberdade.
As Saladas do Amor ou um pouco mais de Antoine
O espectador de Truffaut que acompanha as aventuras de Antoine Doinel pode perceber que elas continuam a passar pela escrita nos outros filmes do ciclo: O Amor aos Vinte Anos (1962), Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970), e O Amor em Fuga (1979). Como o próprio François Truffaut, esse personagem mantém durante toda a sua vida diários, que são em diversos momentos apresentados ao espectador por meio da voz off. Depois ele publica seu livro As Saladas do Amor. A importância do texto para este personagem é inegável. O momento que mais representa isso é quando Collete lê este livro (em O Amor em Fuga) enquanto na tela há as imagens das páginas do romance sobrepostas imagens de momentos da vida de Antoine.
Imagem do filme O Amor em Fuga
A Distancia ou Jules, Jim e as Inglesas
Em Uma Mulher para Dois (1962) e em Duas Inglesas e o Continente (1971) a distância confere à palavra um caráter paradoxal, colocando em evidência por vezes a separação imposta e o erotismo. A palavra se torna lugar de constatação do distanciamento, quando os personagens, que antes estavam juntos, passam a se comunicar exclusivamente através de cartas. Contudo, por outro lado, o texto é lugar de um erotismo que existe apenas em palavras: “ Este papel é sua pele. Esta tinta é meu sangue. Eu aperto forte para que ele entre.”.
A separação se faz presente tanto no que tange a história, como no que tange a linguagem cinematográfica, na medida em que ela não afeta apenas as histórias dos personagens mas também o ritmo dos filmes. Ou seja, em diversos momentos há imagens de personagens que escrevem, seguidas de planos que narram os caminhos das cartas, com vozes que as leem em off. Isso tudo se opõe aos momentos em que os casais estão juntos. Em Uma Mulher para Dois este contraste se dá em relação ao ritmo dinâmico do começo do filme, com planos muito curtos, numa montagem enérgica, repleta de faux raccords, de quebras de eixo, etc. Em Duas Inglesas e o Amor isso acontece em relação ao erotismo da presença dos corpos, que uma vez unidos se buscam e se colam como se fossem magnéticos.
Jules escreve a Catherine “meu amor, eu penso em você sem parar, não na sua alma, pois eu não acredito mais…, mas no seu corpo, suas coxas, suas ancas: eu penso também no seu ventre, no nosso filho está dentro dele”. Depois da guerra Jim conta a história de um artilheiro que, por meio de suas cartas, havia conquistado uma jovem que ele havia visto uma vez no trem e que, pulando na plataforma, lhe havia dado seu endereço. Ele escrevia para ela cartas a cada vez mais íntimas. Depois escreveu à mãe dela pedindo sua mão e tornando-se assim seu noivo sem nunca tê-la reencontrado. É uma história de amor completamente construída à distância e jamais concretizada, uma vez que ele morreu durante a guerra.
A Obsessão ou Adele et Bertrand
Em A História de Adele H. (1975), assim como em O Homem que Amava as Mulheres (1977), o texto é o próprio tecido da ficção, sendo tanto para Adele como para Bertrand o lugar de suas paixões fatais. Para ela é a obsessão por um homem e para ele, por todas as mulheres (e ao mesmo tempo por nenhuma). Mergulhados em seus diários, esses dois personagens se desconectam da realidade para viver essas paixões que existem apenas em seus textos. É a idealização levada ao extremo.
Imagem do filme A História de Adele H.
Para Adele H. é o diálogo entre romantismo e loucura. Se a escrita é para seu pai a notoriedade, para ela é a obscuridade. Filha anônima de um pai célebre, isolada em seu quarto fechada, com o mínimo de luz necessária para escrever, envolta em sua echarpe como num casulo e assombrada pelos seus pesadelos de afogamento, Adele se refugia na escrita. Quando as pessoas (Ms Sounders e Mr. Whistler) tentam se aproximar, ela se fecha ainda mais. Ela vive exclusivamente por seu amor delirante pelo tenente. Uma vez que ele não corresponde seu amor, ela mergulha em suas cartas e diários, nos quais se perde até enlouquecer.
Bertrand, pelo contrário, é frio e calculista. Ele não busca o amor de uma mulher específica, mas a perfeição da feminilidade encarnada nos corpos das mulheres. Assim, seu diário tem a função de relatar sua busca, fadada ao fracasso, num movimento análogo àquele dos modelos de avião que ele manipula em seu laboratório, girando sempre em círculos, sem nunca parar nem encontrar um objetivo. Ou como os modelos de navios fechados numa piscina artificial com ondas falsas. Porém a imagem mais simbólica do filme é aquela do carro que segue uma estrada, cujo fim não se vê, tornada ainda mais forte pela sobreposição de pernas femininas que, descoladas do fundo, andam para lugar nenhum. Assim Bertrand busca seu ideal se descolando da realidade até o ponto de literalmente esquecer-se de si mesmo.
Imagem do filme O Homem que Amava as Mulheres
A Combustão ou Montag
Finalmente Farenheit 451 (1966) é o pesadelo. Todos os livros, toda a paixão dos homens foi queimada e suas cinzas foram queimadas de novo. Se nos outros filmes as emoções dos personagens passam pelo texto, essa sociedade que destrói seus livros se tornou apática. As pessoas passam suas vidas drogadas em frente à televisão. É impossível portanto ter uma verdadeira vida sem os livros, como atesta a senhora que prefere se incinerar do que levar uma vida sem livros.