Existe uma imensa contradição presente nas manifestações em curso em São Paulo que precisa ser rapidamente trabalhada a bem de sua própria amplitude e potencial transformador. Se a grande maioria dos manifestantes prega que “não é pelos 20 centavos”, por que o movimento paulistano ainda mantém esse mote?
Primeiramente, é importante reconhecer que o aumento do preço do ônibus foi apenas um mero estopim. Poderia ter sido a morte de mais um jovem na porta de casa ou uma revolta contra o estatuto do nascituro. O país está efervescendo, e isso fica claro quando se observa o número cada vez maior de protestos Brasil afora: greve de professores, greve de metroviários, protestos indígenas, revolta dos trabalhadores em Jirau, protestos contra Marco Feliciano etc. Consequência direta desse cenário é que devemos resignificar o movimento.
Compreendido isso, é fundamental que se entenda a dificuldade de se construir uma pauta coletiva que atenda aos interesses de um grupo cada vez maior e mais heterogêneo. O lema atual é absolutamente incondizente com a magnitude histórica das manifestações e incapaz de comunicar ao restante da população as verdadeiras causas da insatisfação. Vale lembrar que a geração de brasileiros que hoje toma as ruas nunca viu, e muito menos participou, de nada parecido em toda sua vida. O grito de que “o povo acordou” é de arrepiar, estimulante, encorajador, mas esconde sob si a duríssima verdade de que estamos apenas começando a acordar (e tem muita gente querendo desligar o despertador!!!).
Os setores conservadores não perdem tempo e, tendo percebido a força e o potencial do processo em curso, já tentam dele se apropriar através de uma manipulação midiática impressionante. A aparente mudança de postura da Folha de São Paulo ao longo da semana, a capa da Veja deste sábado e o discurso de hoje cedo de Arnaldo Jabor na CBN são exemplos nítidos de como vão agir os grupos reacionários. A tática deles tem e terá dois eixos complementares: de um lado, tentativas destinadas a aplacar o ânimo popular; de outro, esforços no sentido de transformar o movimento em instrumento de apoio à agenda conservadora (combate hipócrita à corrupção, judicialização da política etc.).
Diante desse cenário, é urgente a criação de uma pauta enxuta e de potencial agregador, que não divida o movimento atual e que consiga incorporar pessoas (em especial trabalhadores), que estão, sim, apoiando, embora ainda de fora. Para atingir tal objetivo, nada é mais importante do que atentar ao que os manifestantes têm dito, e uma boa tradução do anseio popular talvez possa ser encontrada em um canto que tem preenchido as noites paulistanas: “a gente tá lutando / por uma vida sem catraca!”. Se para o estudante, o cerceamento da liberdade é representado pela tarifa do ônibus, por uma escola que pouco ensina ou pelo filtro perverso do vestibular, para a mulher ele toma forma na impossibilidade de ter o mesmo salário que um homem, nas legislações obscuras que querem dominar seu corpo e nas dificuldades para denunciar o marido violento. Para o negro, que foi submetido por muito tempo a antigas catracas chamadas grilhões, hoje elas se apresentam na discriminação cotidiana da qual é vítima e que se reflete nas dificuldades para ocupar os cargos mais altos ou nas sirenes infernais de polícia que, ao invés de proteção, anunciam “batidas” indiscriminadas e a morte nas periferias. E se as minorias têm de se preocupar a cada instante da vida com a violência gratuita dos opressores de plantão, para o trabalhador pobre, a vida nesse país é uma série incontável de catracas, de todos os tipos, superadas (ou não) no dia-a-dia com uma força gigantesca, mas que esgota.
O que ficou claro nos acontecimentos da semana passada, no entanto, é que os donos do poder não aceitam nenhum tipo de mobilização popular, pois, no fundo, eles morrem de medo do exemplo e de as catracas de que se alimentam começarem a ser rompidas. O que também restou nítido é que a brutalidade do Estado, a despeito de ter diminuído com a Constituição de 88, ainda resiste. E que a nossa curta e frágil democracia precisa mesmo de um chacoalhão popular. Apesar de terem níveis muito distintos, tanto a recusa ao diálogo esboçada inicialmente por Haddad, quanto a violenta repressão policial ordenada e aplaudida por Alckmin são facetas de um autoritarismo inaceitável.
A luta pontual pela redução da tarifa, pelo passe livre, pela melhoria geral das condições do transporte coletivo, deve continuar, sem dúvida. No entanto, não devemos esperar o desenrolar dessa questão para partirmos para próxima. É fundamental aproveitar o momento histórico! É preciso construir, desde já, a demanda por muito mais democracia! E para tê-la, o que é preciso exigir? Existem 4 transformações que precisam ser implementadas para que o país dê um vigoroso salto democrático, libertando-se das amarras historicamente construídas pela promiscuidade entre os poderes político e econômico. São elas:
- REFORMA POLÍTICA – democracia participativa e direta em larga escala; maior utilização de plebiscitos; e financiamento público de campanha, para tirar do poder econômico o controle sobre o processo eleitoral e, portanto, sobre o funcionamento do Legislativo e do Executivo.
- DEMOCRATIZAÇÃO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÂO – qualquer um que tenha participado das manifestações percebe que a realidade que a grande mídia constrói (e que o público apreende) em nada tem a ver com a realidade. E é SEMPRE assim, pois ela está a serviço dos poderosos.
- REFORMA TRIBUTÁRIA – o Brasil é uma exceção no mundo: aqui ricos pagam menos impostos do que pobres e isso tem que acabar. A única forma de termos uma sociedade menos violenta é diminuindo a desigualdade. MENOS IMPOSTOS PARA AS CLASSES MÉDIAS E POBRES E MAIS IMPOSTOS PARA OS MAIS RICOS.
- DESMILITARIZAÇÂO DAS POLÍCIAS – essa aberração só existente no Brasil, herança maldita da ditadura militar, tem mostrado de forma despudorada todo o seu caráter repressivo.