Sunday, June 22 2025

“De todas as artes”, escreveu o crítico literário palestino Edward Said, “a menos conhecida entre pessoas com cultura geral é a música”. Dando prosseguimento ao argumento, Said exemplifica: “um sujeito culto, um filósofo, se interessa por literatura, conhece um bocado de fotografia, sabe muito sobre cinema, pintura, escultura, teatro, e não sabe nada de música”. À guisa de conclusão, Said, sempre sensível às reverberações políticas dos conceitos que emprega, assevera: “Existe uma espécie de apartheid envolvendo a música, uma coisa que me parece exclusiva desta época”.

 


A versão brasileira do diagnóstico realizado por Said, devidamente sintonizada com nossas questões internas, foi proposta em um depoimento dado pelo compositor Gilberto Mendes que, apesar das impressões largamente subjetivas, merece ser citado na íntegra: “Se você perguntar a um intelectual brasileiro, ou a um artista, quais são seus escritores, pintores, cineastas e compositores preferidos, ele certamente responderá: Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Volpi, Klee, Beuys, Godard, Bergman, Glauber Rocha… e Caetano Veloso, Chico Buarque. Nem mesmo Villa-Lobos ou Stravinsky vão passar pela cabeça dele. A música erudita de nosso tempo simplesmente não existe para a classe culta brasileira. Ninguém vai lembrar de um Almeida Prado, Jorge Antunes, Paulo Chagas, Livio Tragtenberg, Rodolfo Coelho Sousa, Silvio Ferraz, Flo Menezes, Rubens Ricciardi. Nunca ouviram esses nomes. Ou, se ouviram, não se interessam; para eles é uma coisa que não conta para a cultura brasileira”.

Realizadas há pouco menos de 15 anos e separadas por um intervalo de poucos meses, ambas as análises levantam questões que persistem ainda hoje como lembrete da situação particular da qual a música padece em nossa época: sua ausência do espectro de interesses dos campos de formação de conhecimento, tais como universidades, imprensa, mercado editorial, entre outros. Diante de campos que se pretendem universalistas, ambiciosos em sua pretensão de tudo analisar e tudo comentar, a ausência da música em suas pautas aponta apenas para uma fatalista condição: a música, tanto como parte do repertório cultural, tanto como fonte de conhecimento, simplesmente não existe.

A verdade, no entanto, não é tão taxativa quanto sugere o quadro acima. Em anos recentes, no Brasil, várias universidades passaram a organizar diversos congressos, simpósios, encontros e afins destinados unicamente a compreender o fenômeno musical à luz de diversas teorias e abordagens. Nesse sentido, foi empreendido todo um esforço intelectual para corrigir nosso atraso em relação aos grandes centros intelectuais mundiais ligados a essas preocupações. Contudo, não obstante essa iniciativa, a música mudou-se do porão para a Torre de Marfim: ausente dos debates e quadros de interesses gerais, ela passou a ser alocada dentro dos muros seguros das universidades, perpetuando o apartheid da música com relação à vida. Em outras palavras, a situação da música pouco mudou apesar da expansão salutar do leque de interesses acadêmicos das universidades brasileiras.

As respostas para esta situação exclusiva à nossa época – na análise de Said –, sabemos, não são simples. A questão é complexa e remete à história da música. Desde que ascendeu ao estatuto de arte autônoma por volta do início do século XIX, isto é, desde que passou a poder responder apenas às suas necessidades internas, deixando de lado os ditames e regras impostos de fora e do alto, pela Igreja ou pelo Estado, a música passou a operar segundo um paradoxo: ao mesmo tempo em que é a mais acessível das manifestações artísticas, por transcender os domínios da linguagem falada e escrita, é também a mais inacessível, dado sua natureza efêmera e abstrata. Por estas e outras razões, nossa aproximação com a música sempre se deu com certa ambiguidade: ora enfatizando seu desprendimento inato dos canais de comunicação, ora ligando-a às mais esotéricas interpretações e funções.

Somando-se a essa situação, o século XX testemunhou o surgimento de linguagens musicais que, conscientemente, voltaram-se para dentro de si, buscando refúgio em suas leis internas ante a explosão da cultura de massa, o uso político de suas potencialidades comunicativas e o pretenso desligamento da tradição musical do passado. A música, para certos compositores, portanto, tornou-se um bastião artístico frente um mundo cada vez menos passível de organização – tanto vital quanto esteticamente. Nesses casos, como em muitos outros, a universidade, principalmente nos Estados Unidos, foi o único meio de sobrevida para certas manifestações musicais. Quaisquer que fossem os impulsos criativos que pesavam sobre os compositores no passado, eles haviam mudado: compor agora era antes uma atividade curricular ou, em alguns casos, uma prática científica.

No caso brasileiro, creio que o crescimento da Indústria Cultural cobrou um ônus enorme para os compositores nacionais. Como tantos outros compositores mundo afora, restou-lhes apenas contribuir com a famigerada separação binária de origem burguesa: música erudita versus música popular. Com efeito, foi-lhes fornecido um subterfúgio conceitual e prático desligado da outra ponta da oposição e, no limite, da própria sociedade. Vale mencionar que o termo “música erudita”, no Brasil, acentua descaradamente essa oposição, lastreando o abismo criado em parte pelos próprios músicos. O saldo dessa separação, como não poderia deixar de ser, foi negativo.

A música erudita do pós-Segunda-Guerra – período de consolidação e crescimento da Indústria Cultural – voltou-se deliberadamente para dentro, principalmente por conta do uso que o Nazismo havia empreendido da música e das artes em geral. Assim, voltar-se para si mesma era uma maneira segura de evitar os abusos cometidos pelo Estado, tal como ocorrera no passado recente.

A linguagem artística predominante nos anos imediatamente seguintes à Segunda Guerra foi a do Serialismo Integral – a organização rigorosa de todos os âmbitos musicais, tais como altura, dinâmicas, orquestração e assim por diante. O Serialismo Integral forneceria à música, através de suas leis e de seu rigor, a senha para desligar-se de quaisquer relações com elementos externo. Logo, o tema da música era a própria música.

Contudo, o Serialismo Integral logo fomentou diversas críticas, entre elas: o rigor paralisante de sua linguagem transformara-se em um sistema, beirando a estrutura inerente a um dogma, além de que seu apelo auditivo era quase inexistente, dada sua complexidade e ausência de pontos de contato entre o ouvinte e a obra. Deste modo, os compositores passaram a se abrir para experimentações menos acadêmicas, respondendo a uma exigência não só social como também estética. O desligamento por parte da música passava assim a ser questionado. Além disso, contribuiu para essa abertura uma outra questão, esta de ordem política.

O Nazifascismo maculou a direita da vida política europeia no pós-guerra. A extrema-direita, responsável pelo descalabro sem precedentes que manchou a Europa, logrou todas as bandeiras políticas que não se encontrassem à esquerda. O cenário político do pós-guerra, deste modo, ficou reduzido às políticas e valores vinculados tradicionalmente à esquerda. A União Soviética, assim como os países do Novo Mundo, foram alçados à condição de futuros possíveis, dotados de bandeiras românticas ligadas à liberdade e a possibilidades infinitas. Na Europa, com raras exceções (entre elas Albert Camus talvez seja uma das mais ilustres), diversos intelectuais, assim como a cultura em geral, endossaram valores progressistas e utópicos. E no nível artístico, o Serialismo Integral, por sua vez, pretendia exatamente isso: professar uma utopia estética.

Na década de 1970, o sonho, no entanto, acabou. A utopia mostrou-se infértil: tanto o âmbito artístico quanto o social revelaram seus impasses. Enquanto, como mencionado, o Serialismo Integral se deparou com críticas sérias relativas às suas potencialidades e pretensões, as bandeiras de esquerda colidiram com eventos e revisões que abalaram seus alicerces ideológicos. Assim, em 1973, foi publicado no ocidente “Arquipélago Gulag”, um poderoso relato escrito por Alexander Soljenítsin sobre as atrocidades cometidas pelo regime soviético contra seus detratores e prisioneiros. A obra surtiu efeito imediato na opinião pública europeia. A esquerda, enfrentando problemas diversos há já vários anos, passou a perder seu prestígio de maneira mais acentuada, garantindo a expansão do leque de ideologias políticas possíveis. Deste modo, a cena musical, igualmente, passou a conjugar um cenário mais plural. Esses anos coincidiram, não por acaso, com a popularização e a maturação do Minimalismo norte-americano: tanto uma reação às linguagens radicais propaladas pelas escolas europeias como uma aceitação de uma Indústria Cultural cada vez mais presente. As utopias, tanto políticas quanto artísticas, não eram mais nem uma opção e nem mais um desejo.

Vários dos compositores citados por Gilberto Mendes no início deste texto – e ele próprio inclusive – tiveram contato com a cena europeia do pós-guerra de modo direto, importando para o país o que havia de mais avançado na produção da vanguarda musical mundial, assim como as posições políticas em voga na Europa daqueles anos. Tais compositores, no entanto, radicalizaram certas posições políticas, militando por uma utopia estética e política que, no limite, estava separada da sociedade vigente – mesmo levando-se em conta, a partir da década de 1960, a dificuldade de se viver e criar no interior de um Estado de Exceção, tal como foi o período do regime militar brasileiro (1964 – 1985).

A teoria comunista forneceu, para muitos, um modelo de sociedade e de ambiente criativo que deveria ser alcançado. Um desses compositores, Willy Côrrea de Oliveira, em entrevista realizada há sete anos chegou ao ponto de afirmar: “Inexiste música no capitalismo”. Para ele, como para muitos outros, o capitalismo – e tudo aquilo que floresceu junto a ele, como a Indústria Cultura – deveria, necessariamente, deixar de existir.

Deste modo, tanto a ascensão do regime militar quanto o entusiasmo caquético pelas teorias comunistas – que vale mencionar: já estavam presentes antes do golpe, em 1964 –, encurralaram os compositores brasileiros em um buraco criativo estéril. O bonde da história, sempre atrasado, não parou na estação Brasil. Enquanto a música na Europa e, principalmente nos Estados Unidos, cooptou, criticou e solidarizou-se com as invenções vindas da Indústria Cultural (um exemplo emblemático talvez seja a presença da imagem de Stockhausen na capa do LP dos Beatles “Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band”), a música feita no Brasil enfurnou-se nos muros das universidades, quase como que emburrada pela incompatibilidade com as exigências do mundo lá fora.

Apontar as relações entre a arte e seus contextos históricos e sociais nunca é uma tarefa fácil. As linhas que separam esses campos de força jamais são lineares e claras. No entanto, para aqueles que acreditam que a arte de fato nasce de sua relação com o mundo, esse exercício pode jogar luz sobre os acontecimentos que conjuram para o florescimento ou não de uma prática artística. O apartheid de que fala Said, quando aplicado a caso brasileiro, aponta para algumas questões incômodas: no fundo, muito da separação da música da sociedade, foi causada pela ação de seus músicos. Caso queiramos que a música erudita venha a fazer parte da cultura brasileira de modo perene, tal como acontece em vários lugares do mundo, é preciso atacar essas questões, começando por aqueles que se julgam seus defensores.

 João G. Rizek é pianista e compositor. Mestre em musicologia, atualmente é assistente de formação da fundação Theatro Municipal de São Paulo.

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