Os padrões estéticos disseminados e a identificação de valores e capacidades com a aparência promove sofrimento a muitos, principalmente às mulheres. Além de restringirem a vida e as possibilidades de experiências, esses ideais dificultam a celebração do nosso corpo como sendo a possibilidade de experimentar a vida.
A opressão que os padrões estéticos promovem é violenta, se tomarmos a mulher como foco ainda mais. No ocidente, seguimos acreditando que difundimos valores de liberdade, porém ao analisarmos os padrões estéticos propostos, por exemplo, observaremos uma violência extrema, que restringe formas de existir e que é capaz de impossibilitar experiências. Essa restrição pode impedir que uma jovem vá à praia por vergonha de seu corpo, impedir que ela se alimente de maneira que possibilite sua sobrevivência ou levá-la à mesa de cirurgia.
Ensinamos quais são os padrões estéticos por meio de nossa cultura, que abrange família, mídia, escola e mais. A mídia ensina as mulheres desde jovens que a sua aparência é fundamental para validar seus desejos e sonhos, somente uma mulher considerada bonita, é passível de ser amada, de ter sucesso profissional e de ser admirada.
Para definir o que é belo, são representadas características físicas muito específicas – frequentemente as mulheres chamadas de belas, são brancas, magras e altas. Porém as “regras da beleza” vão além, elas ditam o formato do rosto, a cor dos olhos, o tamanho, formato e a cor dos seios, o “tipo” e cor de cabelo, ditam que as unhas devem ser pintadas e os pelos arrancados; a lista é interminável e deve ser cumprida, porém sem que a mulher que a cumpra seja julgada como fútil. Ou seja, é preciso cumprir uma lista, que é alimentada a cada segundo, por indústrias de cosméticos e de remédios, porém deve-se fazer isso sem que os outros percebam.
Esse cenário é capaz de incentivar e manter, “transtornos de imagem corporal” e “transtornos alimentares”. Dentro de uma abordagem fenomenológica, não acredito, que, necessariamente, haja uma relação causal, direta e explicativa entre imperativos estéticos ou a cultura, com qualquer “modo-de-ser” assumido pelo ser humano. Porém considerando que somos no mundo, ou seja, só existimos como unidade: homem – mundo; mundo esse que é compartilhado com os outros, acredito que o valor dado à magreza/beleza é um aspecto possível de manter “transtornos” dessa tonalidade.
Tão importante quanto o peso ou alguma outra característica física não tolerada, no caso desses adoecimentos são as atitudes referentes à vida como um todo. A comida e qualquer situação que remeta à alimentação farta e muitas vezes prazerosa se tornam ameaça. A vida compartilhada passa a se tornar impossível, com aqueles que não se sentem amedrontados pela comida; restaurantes, festas e comemorações passam a ser sinal de descontrole com as escolhas alimentares e colocam a própria existência em jogo. As relações afetivas são ceifadas da vida dessas pessoas, as possibilidades limitadas, o mundo passa a ser restrito a uma pequena lista de locais e situações possíveis de serem controladas a ponto de não serem ameaça. A vida pode passar a se resumir a esquivas de situações antes apreciadas, a solidão e ao medo.
Essas formas de adoecimento não devem ser compreendidas como situações restritas às mulheres. Apesar de ainda ser a maior parcela da população que recebe esse tipo de diagnóstico, os homens também, e cada vez mais, são diagnosticados com “transtornos” alimentares ou de imagem corporal.
O limite entre o que seria diagnosticado como adoecimento, tendo em vista o peso ou a restrição de vida é tênue. Mulheres que são símbolo de beleza muitas vezes apresentam o IMC (Índice de Massa Corpórea) semelhante ao de meninas internadas com o diagnóstico de anorexia. Já se tornou banal ouvir relatos de mulheres que deixaram de fazer algo por vergonha de seu corpo ou por acreditarem não serem capazes por conta de algum aspecto físico. Odiar o próprio corpo ou procurar tratamentos estéticos, muitas vezes dolorosos e perigosos à vida, se tornou algo cotidiano. Devido a esse cenário essa reflexão diz respeito a todos, não só àqueles que sofrem de uma restrição mais severa, como um diagnóstico psiquiátrico e psicológico.
Uma vida restrita e engessada empobrece o mundo de relações e experiências possíveis, limita a existência e pode gerar sofrimento. O corpo pode e deve ser celebrado pelas sensações que nos permite: sentir o vento no rosto em um dia quente, sentir o toque da pessoa amada, cantar, dançar, beijar, abraçar, ouvir uma música…
Somos corpo, na medida em que é através dessa forma de estar no mundo, como ente corporal, que podemos perceber os entes, sentir prazer e experimentar a vida. Dessa forma o corpo pode ser entendido como mais do que matéria inanimada, passível de ser moldada, esticada, cortada, em suma controlada, mas como a possibilidade de perceber o mundo. [1]
“As cores de um pôr-do-sol só são aquelas que nós vemos porque as vemos com nossos olhos. Se tivéssemos acesso à radiação ultravioleta ou à radiação infravermelha, veríamos um mundo diferente. As cores do céu, da mata, o barulho do vento, o perfume das flores, são corporeidade”. [2]
Essa frase ilustra a forma de compreender o corpo e a corporeidade, que seria então não o corpo inanimado, seus limites de tamanho e altura ou o contorno de sua epiderme, mas o seu “corporar”, que sustenta a manifestação dos entes do mundo, considerando o paradigma da psicologia fenomenológica.
A quebra de paradigma é lenta por ser uma construção. Acredito que através de compreensões menos dualistas do ser humano e através de reflexões críticas acerca do tecnicismo e do legado histórico cultural que estamos construindo é possível transformar um cenário capaz de sustentar um sofrimento que anula possibilidades e encarcera lentamente pessoas.
[1] POMPÉIA, João Augusto, Corporeidade, em Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, nº 12. 2003.
[2] Ibd.
Natália Marcourakis Calegare, nascida em São Paulo, Brasil, está no último ano da graduação de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-Sp). Segue seu Trabalho de Conclusão de Curso na área dos transtornos alimentares, com enfoque na abordagem fenomenológica.