RESUMO
O artigo debruça-se sobre a produção artística de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, instalada no adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, analisando a maneira como o detalhamento minucioso das figuras ressalta o aspecto divino retratado pelo artista: a antítese entre o mundano e o divino realça a complementaridade entre opostos, aspecto presente também em um trecho de Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes. Partindo dessa análise, o texto “A Significação Antitética das Palavras Primitivas”, de Freud, fornece uma base para a fundamentação do artigo, por tratar da maneira como os conceitos se estabeleceram, nas linguagens antigas, através dessas oposições – antíteses – que ajudaram a fixar significados individuais na mente dos falantes ao longo da história.
O presente artigo tem como intuito buscar novas relações entre a obra do artista brasileiro conhecido como Aleijadinho e questões das quais se ocupam a filosofia e a estética, e procura estabelecer pontes e caminhos no campo conceitual, não de modo a explicar significados e reduzi-los a uma única interpretação, mas observando as ideias que circundam determinada produção artística, de modo a ampliar o seu alcance: o texto que se segue é uma breve tentativa nessa direção.
As obras de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, em Congonhas do Campo, instaladas no adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, e nas capelas à sua frente, podem revelar questões instigantes que permeiam a materialidade da arte contemporânea. A começar por essas obras comporem um complexo de instalações a céu aberto, tanto se relacionando com a paisagem como faziam os artistas norte-americanos da Land Art nos anos de 1970 – ou como que se estivesse já trabalhando com o conceito de “ site specific ” elaborado por Rosalind Krauss na década de 60, e abordado por muitos artistas contemporâneos, que criam instalações pensadas especificamente para estarem em determinados lugares, e que com eles conversam diretamente.
Este conjunto de instalações é composto por 66 esculturas em cedro e mais 12 em pedra-sabão, excetuando-se as figuras dentro da igreja como os dois tocheiros e os dois mamíferos marinhos que ladeiam o altar principal, todas representam figuras humanas em tamanho natural. As 12 esculturas que ficam no lado externo são os profetas, que Aleijadinho reuniu num sentido acrônico. Os outros conjuntos são compostos por 7 cenas da vida de Cristo ocupando 6 capelas, isso porque existe uma capela com 2 cenas retratadas simultaneamente.
Pensando sobre a concepção das esculturas, pode-se notar que elas têm uma procura por um realismo verossímil que por vezes parece destoar do teor religioso que as obras podem evocar, principalmente na criação das figuras dos soldados. Em seu livro Oficina do Aleijadinho, Myrian de Oliveira destaca o detalhamento destas figuras dizendo que “A escultura representa um soldado romano de joelhos em frente a outro, tirando a sorte sobre a túnica de Cristo, no chão. Aparece vestido de camisa, com couraça, saiote, capacete e botas”. Esta descrição se refere a um soldado no Passo da Crucificação. Myrian destaca que este soldado e muitos outros poderiam ter sido realizados pelos oficiais do mestre Aleijadinho, isto é, assistentes do artista. A prática de os artistas usarem assistentes é muito mais antiga e acontece até os dias de hoje, o que em nada desmerece a autoria atribuída a eles, pois o controle da produção fica inteiramente nas suas mãos. Deste modo, a escolha deliberada por detalhar as vestes dos soldados a ponto de mostrar de que forma tecidos e adereços são presos recai inteiramente sobre o Aleijadinho. Este detalhamento revela se a fivela no cinto de couro está apertada, se o furo está alargado e se a camisa é presa por botões ou outros tipos de presilhas Alguns capacetes são presos por cintas de couro com fechamento em forma de fivelas de metal e outros por botões. Os adereços, roupas e ferramentas chamam a atenção pela lógica da fisicalidade, ou seja, a cinta teria a capacidade de segurar o capacete, e o cinto da roupa seguraria o saiote de couro do soldado.
A dedicação concedida à execução desses detalhes é visível com a observação das esculturas – mesmo quando vistas através de reproduções -, e tal esmero levanta questões metafísicas que transcendem o aspecto material do trabalho do escultor. Parece que através de efemeridades como fivelas, como as que foram retratadas nas esculturas em madeira de soldados romanos no Passo da Prisão, em Congonhas, fica estabelecida uma relação de contrapontos, fundamental à uma imagem religiosa barroca – o divino, nesse caso, pode construir-se em contraposição ao mundano e ao fugaz.
A ideia de que um conceito só se estabelece por meio de seu oposto jaz na raiz da própria linguagem, e é um assunto que permeou discussões na área da linguística e de que Sigmund Freud trata em seu texto “A Significação Antitética das Palavras Primitivas”, no qual cita um folheto do filólogo Karl Abel que explica de que maneira algumas palavras do Egito antigo significavam ao mesmo tempo uma coisa e seu oposto, enquanto outras palavras eram compostas com dois opostos “há também compostos como ”jovem-velho”, “longe-perto”(…)” em que apenas queria-se dizer jovem, ou longe, respectivamente. E Freud explica: “Nossos conceitos devem sua existência a comparações”, como Abel também elucidou em seu folheto, publicado em 1884
(…)é nas `raízes mais antigas’ que se vê ocorrerem as significações duplas antitéticas. No curso subseqüente do desenvolvimento da linguagem, esta ambigüidade desapareceu e, no Antigo Egito, pelo menos, todos os estágios intermediários se podem acompanhar, até a não-ambigüidade dos vocabulários modernos. `Uma palavra que originariamente comportava duas significações separa-se, na linguagem ulterior, em duas palavras com significações individuais, num processo pelo qual cada uma das duas significações opostas sofre uma “redução” (modificação) fonética particular da raiz original.’ Assim, por exemplo, nos hieróglifos, a palavra “ken”, “forte-fraco”, já se divide em “ken, “forte” e “kan”, “fraco”. Em outras palavras, conceitos a que só se poderia chegar por meio de uma antítese tornaram-se, no curso do tempo, suficientemente familiares às mentes dos homens, possibilitando uma existência independente, para cada uma de suas duas partes, e, em conseqüência, permitindo a formação de um representante fonético separado para cada parte.’
(FREUD, 1970, p. 96)
Em seu texto, partindo da análise do folheto de Abel bem como do mecanismo que observa nos sonhos, Freud conclui que a antítese se dá por conta da interdependência existente entre conceitos aparentemente opostos
O homem não foi, de fato, capaz de adquirir seus conceitos mais antigos e mais simples a não ser como os contrários dos contrários, e só gradativamente aprendeu a separar os dois lados de uma antítese e a pensar em um dêles sem a comparação consciente com os outros.
(FREUD, 1910, p. 95)
O conceito de arte, bem como a capacidade de discerni-lo, se estabelece através de um jogo de oposições, que constituem o seu campo relacional, ideia abordada por Arthur C. Danto no livro Transfiguração do Lugar-comum. Quando uma obra se apropria de objetos comuns, ela ao mesmo tempo constrói uma nova versão daqueles objetos, deslocando-os para outro lugar, e, através da distância que se coloca entre determinado objeto transfigurado e um objeto comum, torna-se mais clara a relação entre esses dois opostos. Esse movimento, que Danto observa na Arte Pop e nos Ready-mades de Marcel Duchamp, pode ser observado também no barroco brasileiro de Aleijadinho.
Tendo em mente esse jogo de oposições, identifica-se uma estratégia na estética adotada por Aleijadinho na execução dos soldados retratados no Passo da Prisão, no Passo da Flagelação, no Passo da Coroação de Espinhos, no Passo da Cruz às Costas e no Passo da Crucificação. Em todas as representações há minúcia nesses detalhes tão pequenos, um ressaltar do menor que produz a exaltação do grande, da figura serena e tranquila que ele constrói para representar Jesus Cristo nos momentos cruciais e mais dolorosos atribuídos à história de sua vida, enquanto são exacerbados e violentos os semblantes dos soldados representados em sua crucificação. Uma antítese que também se instaurou na base do pensamento cristão, trazido de Portugal aos índios e africanos escravizados e homogeneizados na cultura brasileira pós-colonial, através de um processo violento.
Através desse ponto fundamental – o abismo entre o infinito que seria o divino e o oposto disso, a parte mais ínfima e mundana desse infinito, enfatizado ao máximo pelas imagens religiosas e pela maneira de construção do discurso católico – observa-se sob nova luz o trabalho do escultor em retratar a fivela, preenchendo com suas pontas os buracos no cinto do soldado romano, a fivela também nos mínimos detalhes no capacete, os botões da camisa que vai por baixo da couraça entrando pelos buracos no tecido, e as formas dos mamilos imprimidas na couraça. As fivelas de alguns soldados possuem duas pontas e as de outros possuem apenas uma. Há também riqueza de detalhes nas representações de santos, mas as vestes não são tão protuberantes em detalhamento como o são as vestes dos soldados. Nota-se, através da maneira que foram esculpidas, o desgaste no buraco onde entra um botão, ou a marca que denota muito uso de um mesmo buraco no cinto onde entram as fivelas. É interessante notar como no Passo da Ceia os santos São João, Santo André, São Felipe, São Tiago Maior, São Tomé, São Bartolomeu, São Tiago Menor, São Mateus, São Simão, São Judas Tadeu, não possuem botões ou fivelas, apenas São Pedro e Judas Iscariotes possuem botões em suas vestes. Já no Passo do Horto apenas São Pedro Adormecido apresenta os botões. No Passo da Prisão, Judas e São Pedro aparecem com túnicas presas por botões. Nenhuma das representações de Cristo mostram como suas vestes são presas, apenas no Passo do Horto, Cristo aparece com um pequeno broche segurando seu manto, como se o santos ou mesmo Cristo não precisassem explicar a lógica de suas roupas, como se eles estivessem num mundo abstrato, elevado, etéreo, enquanto que todos os soldados e servos apresentam as justificativas das suas vestimentas, como se seguram ao corpo por fivelas, botões ou presilhas, se são de couro ou de metal. Excetuando-se São Pedro e Judas Iscariotes, talvez por terem relações mais concretas com a história, o primeiro pela fundação da Igreja e o segundo pelo evento da traição a Cristo.
Outro exemplo dessa antítese, vista por Freud e Abel como fundadora dos conceitos, pode ser encontrado no romance Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, no trecho transcrito
Mas, quer fosse pela friagem da manhã, que já começava, quer por ter Sancho ceado alguma coisa laxante, quer fosse enfim coisa natural (que é o que mais depressa se deve crer), veio-lhe a ele vontade de fazer o que mais ninguém poderia em seu lugar; mas tamanho era o medo que dele se tinha apossado, que não se atrevia a apartar-se uma unha negra do amo. Cuidar que não havia de fazer o que tão apertadamente lhe era necessário também não era possível . O que fez, para de algum modo conciliar tudo, foi soltar a mão direita, que tinha segura ao arção traseiro, e com ela, à sorrelfa e sem rumor, soltou a laçada corredia com que os calções se aguentavam sem mais nada, e, soltando-a caíram-lhe eles logos pés que lhe ficaram presos como em grilhões; depois levantou a camisa o melhor que pôde, e pôs ao vento o poisadouro (que não era pequeno). Feito aquilo que ele entendeu ser o essencial para sair do terrível aperto, sobreveio-lhe logo segunda e pior angústia, que foi parecer-lhe que aliviar-se sem fazer estrondo; e entrou a trilhar os dentes e encolher os ombros, tomando a si o fôlego quanto lhe era possível; mas, com todas estas precauções, tal foi a sua desgraça, que ao cabo e ao fim não deixou de lhe escapar um pouco de ruído, bem diferente daquele que tanto receava. Ouviu-o Dom Quixote e disse:
– Que rumor é esse Sancho?…
– É porque estás cheirando mais do que nunca, e não é coisa boa
(CERVANTES, 2002, pg. 123)
Ao que Dom Quixote, ao sentir o cheiro desagradável e perceber que este vinha do seu companheiro de viagem, disse “ arreda-te de mim três ou quatro passos, amigo… sem tirar ainda os dedos do nariz -; daqui em diante tem mais cautela contigo, e com o que deves a minha pessoa; demasiada conversação em que eu te admito é que é a causa de tamanha descortesia” (CERVANTES, 2002, pg. 123). Esta citação tão resumida não mostra a complexa descrição barroca deste evento, mas ao mesmo tempo revela um pouco do aspecto de mundanidade que se percebe ao ler o romance, a que tipo de crueza e rusticidade estas viagens estavam sujeitas naqueles dias. O clássico da literatura é conhecido por ter alegorias e fantasias criadas pela imaginação de Dom Quixote, que, com uma bacia na cabeça, se imaginava com um elmo lutando contra gigantes para defender a sua Senhora Dulcinéia. O que interessa, para este texto, é esta relação do fantástico com o mundano, dos mais nobres sentimentos como bravura, coragem e amor com as escatológicas descrições da flatulência de Sancho.
Mas porque se preocupar com fivelas e botões, com a representação em madeira das hastes de ferro entrando no couro surrado, quando se está representando a morte do filho de Deus, o evento que funda a sociedade cristã, que, baseado numa ausência, potencializa a imagem, segundo Didi-Huberman, como ele coloca no livro “O que vemos, O que nos olha”? Mesmo nas aventuras e viagens de Dom Quixote, quando este imagina as mais honrosas batalhas, a narrativa faz uma pausa, vira para a direção contrária e começa a descrever um dos fatos mais prosaicos da existência humana.
O que se pretende mostrar é que para se construir um evento e explorar seu real potencial alegórico é preciso de uma parte e do seu oposto, o sublime precisa do desastroso, assim como a matéria sólida precisa do vazio: seria muito difícil mostrar os passos da vida de Cristo simplesmente mostrando ele próprio, sem lugares e objetos. Para este Cristo e sua vida ficarem mais próximos precisa-se das fivelas dos soldados, tão detalhadas quanto os traços das feições nos rostos dos Cristos, já que a ideia de divindade pressupõe o seu oposto, o humano. Para as alegorias de Dom Quixote terem mais força faz-se necessária a descrição das viagens nos seus aspectos mais grosseiros, pois só assim o divino e o nobre tornam-se claros em sua real dimensão, e sem esses contrários, sem a antítese, as unidades perderiam a sua força. Do lado do mundano o divino fica mais eloquente, do lado do prosaico o herói fica mais forte, a alegoria e a metáfora precisam do mundo concreto e comum, uma metáfora não pode ser construída em meio a um cenário de outras metáforas.
Conclui-se este artigo com imagens que mostram alguns dos detalhes mencionados, as fivelas dos soldados romanos nos passos da vida de Cristo, e com uma citação, de Gilles Deleuze sobre o conceito de Mônada de Gottfried Wilhelm Leibniz, onde se vê a relação antitética nas concepções do mais grandioso para o mais ínfimo, a mônada seria o elemento mais simples da natureza, o átomo da essência, e por isso seria o oposto do elemento mais complexo, Deus, se “a mônada é exatamente o inverso de Deus, uma vez que os inversos são números que trocam seu numerador e seu denominador: 2, ou 2/1, tem por inverso 1/2. E Deus, cuja fórmula é ∞, tem por inverso a mônada, 1/∞” (DELEUZE, 1991, p.78). Nesta elaboração ficam presentes no mesmo tecido de forma harmônica conceitos tão opostos como 1 e infinito, sem existir contradição, como se o1 contivesse o infinito, como se um conceito precisasse do outro, um não existiria sem o outro: para Leibniz não existe contradição na coexistência de opostos, pelo contrário, os opostos são um só.
Luah Souza Caribé Rattes, graduada em Artes Visuais no Instituto de Artes da UNESP, luah.caribe@unesp.br.
Prof. Dr. Sérgio Romagnolo, Instituto de Artes da UNESP, R. Dr. Bento Teobaldo Ferraz, 271 – Barra Funda, São Paulo – SP, 01140-070, 3393-8530, sergio.romagnolo@unesp.br.
NOTAS
Luah Souza realizou essa pesquisa durante iniciação científica com bolsa da Pró-reitoria de pesquisa da UNESP (PROPE), cujo tema é “Coisalidade, Transfiguração e antítese na obra de arte contemporânea”.
Declaramos que o presente trabalho foi construído através de colaboração entre os dois autores, que participaram ativamente do processo de pesquisa, produção de texto e revisão.
REFERÊNCIAS
DANTO, A. C. A Transfiguração do Lugar-Comum. São Paulo: Cosac-Naify, 2005
DELEUZE, Gilles. A Dobra, Leibniz e o Barroco, Campinas, Papirus Editora, 1991
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2010.
FREUD, Sigmund. A significação antitética das palavras primitivas. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. xi. Rio de Janeiro: Imago, 1970.
MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Compania das Letras, 2001.
OLIVEIRA, Myrian Andrade Ribeiro de. Aleijadinho: passos e profetas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1984.
OLIVEIRA, Myrian Andrade Ribeiro de, Org. O Aleijadinho e sua Oficina. Rio de Janeiro, Editora Capivara, 2008.
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Nova Cultural, 2002.